Sexual Misconduct in Academia: Informing an Ethics of Care in the University
https://annas-archive.org/md5/f4119bb3798a7a9f60023ba57cc86e5f
Routledge, Interdisciplinary Research in Gender, 2023
Erin Pritchard, Delyth Edwards
This book is about experiences of sexual misconduct in the everyday spaces of academia and what and how we can learn from these experiences to inform an ethics of care in the university.
By bringing a wide range of lived experiences of students, staff and researchers out of their current marginalised positions within academic discussions, the book offers a deeper understanding of sexual misconduct in the academy for both students and staff. Each of the chapters offers not only opportunities for conversation and reflection, but addresses and suggests what responses to academic sexual misconduct could and should involve. By presenting collective accounts of experiencing, witnessing, researching and writing about sexual misconduct in academic spaces, Sexual Misconduct in Academia examines how to develop ethical pedagogical practices, if an ethics of care is to be truly implemented or transformed.
This book is suitable for students and scholars in Gender Studies, Education and Sociology.
The walls spoke when no one else would.
Autoethnographic notes on sexual- power gatekeeping within avant- garde academia.
Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro and Miye Nadya Tom“An unbalanced swing: Anonymous graffiti and the whisper network”
“In midst of the international #MeToo movement, the walls at this institution began to speak. Graffiti shouted what no one dared to denounce. The Former Post-doc Researcher first saw the graffiti at the entrance of the institution’s building saying “Beat it or go away [name of Star Professor]. We [females] all know it.”
…She had the gut feeling that she was not receiving this necessary support because she did not enter the “being friends/colleagues with benefits” scheme that the Apprentice had insinuated a year ago.
She felt that he literally shut the doors: she was never invited to any meeting with the Star Professor’s research group she was supposed to collaborate with, and an invited book chapter for the Star Professor’s book on her field of expertise was no longer needed, no research contacts nor networks were shared, the training opportunities established in the grant were not created.
Now she was being threatened with a disciplinary process of dismissal. This female Ph.D. colleague shared that the graffiti the Former Post-doc Researcher saw on the walls was not the first, the graffiti kept reappearing.
…
“[name of Star Professor] had raped a student.”
….
To date, the authors do not know who was behind the graffiti.7 While anyone has yet to claim responsibility, the writing on the walls enabled female researchers to start whispering and talking in confidence to share their suffering and struggles. As Carrie Rentschler (2018) described, a whisper network among female researchers creates a mutual aid linkage, enabling them to talk in confidence and meet others suffering similar circumstances. It made sense of a safe invisible container where women can connect and share. At the same time, this network breaks the mental and emotional isolation in which many women find themselves facing institutional abandonment. Isolation, lack of peer support, institution’s accusations about “a rumour mill” or “witch hunts,” gaslighting, and mis-information are some of the faces of institutional harassment. Suppose sexual misconduct might be a single assault. In that case, institutional harassment is the fertile ground that legitimizes this sexual misconduct, makes it grow, and enables it.
The walls spoke when no one else would.
…
The method of autoethnography has given us a valuable analytical tool to critically unpack the different interconnected layers of power and how cult- like and family/community dynamics around a Star Professor have enabled a research culture where its reputation should be untouchable.
Many researchers at the centre surrender to that power logic. Having the opportunity to co-write this book chapter has been a very healing process athe individual and collective level for the three of us. At the same time, it has triggered many emotional scars and fear. Despite those triggers, we join the growing critical call from within academia for an urgent paradigm shift in this professional field and strive towards a more collaborative, transformative, and interdependent community.
Autoethnographic notes on sexual- power gatekeeping within avant- garde academia.
Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro and Miye Nadya Tom
https://www.buala.org/pt/mukanda/todas-sabemos
TODAS SABEMOS
Perante o atual debate público suscitado pela divulgação do capítulo “The walls spoke when no one else would: Autoethnographic notes on sexual-power gatekeeping within avant-garde academia”, publicado no livro Sexual Misconduct in Academia: Informing an Ethics of Care in the University (Routledge 2023), expressamos a nossa total solidariedade para com as autoras e demais vozes vindas a público, assim como para com todas as pessoas sujeitas a abusos de poder e outras formas de violência em contexto académico e fora dele. Este documento é uma contribuição coletiva e inacabada para um debate em curso.
I
TOTAL SOLIDARIEDADE
1. Não é difamação
As repetidas e persistentes situações abusivas que o texto retrata, longe de serem episódicas ou um ataque concertado de difamação pessoal, institucional ou política, devem ser interpretadas como uma crítica a dinâmicas institucionais sistémicas, comuns dentro e fora da academia.
2. É estrutural e estruturante
O assédio sexual e moral, o extrativismo intelectual (a prática de plagiar ou reproduzir o trabalho de outrém sem citar, apresentando-o como seu), bem como outras formas de violência, são estruturais e estruturantes de um sistema académico fundado em marcadas hierarquias profissionais e divisões de classe, género e raça. Uma dimensão particularmente insidiosa desta estrutura hierárquica diz respeito à concentração de poder e, por consequência, à monopolização de recursos financeiros essenciais para o desenvolvimento de carreiras de investigação, cuja grande maioria assenta na precariedade. Neste contexto, o assédio pode atingir homens. No entanto, atinge sobretudo mulheres e é mais penalizante para estas, dadas as maiores dificuldades que enfrentam no desenvolvimento das suas carreiras, por conta de, entre outros fatores, o direito à maternidade e ao exercício de funções de cuidado. Tendo em conta a forma como o assédio e a violência contra as mulheres se encontram naturalizados numa sociedade patriarcal e machista, tais atos são frequentemente desvalorizados pelas instituições onde são cometidos, beneficiando os agressores da inércia e conivência de pessoas com responsabilidades administrativas. Assim, quer seja por apatia ou pela racionalização dos comportamentos abusivos, os envolvidos na gestão destas instituições estão também imbricados nessas complexas redes de poder, tornando-se cúmplices do abuso.
3. As retaliações
Não é de ânimo leve que as mulheres se sujeitam ao escrutínio e ao questionamento público. Sabem de antemão o que as espera: juízos de valor, humilhação, deturpação, desvalorização, ridicularização e potencial re-traumatização. Frequentemente, os abusadores apelam a princípios consensuais de justiça, invertem o ónus da culpa e descredibilizam as vítimas, agitando o argumento conspirativo e/ou da perseguição política. Apesar de os abusadores concentrarem em si diversas formas de poder — institucional e económico — acabam por responder às acusações vitimizando-se. A tudo isto soma-se a ausência de códigos de conduta, não havendo, em rigor, espaço para denúncia. Consequentemente, quem decide falar fica totalmente desprotegida no seu local de trabalho/estudo. Sujeita-se ainda a retaliações, tanto mais obscuras quanto maior a “informalidade” das relações de poder e a precarização dos vínculos que dominam o labor académico. Do enunciado resulta uma sucessão de re-vitimização, isolamento, auto-culpabilização e, tantas vezes, desistência. Para não falar do trauma que situações de violência como estas acarretam. No caso em análise, os adjetivos usados contra as autoras do artigo, acusando-as de serem mulheres “difíceis”, “problemáticas” ou mesmo “insolentes”, pertencem a uma longa tradição patriarcal. São lugares (demasiado) comuns mobilizados para as descredibilizar. Acresce que o referido artigo tem sido alvo de argumentos pretensamente académicos, atacando a sua falta de rigor e a idoneidade de quem terá feito a revisão por pares. Critica-se o método auto-etnográfico, método válido de articulação, caracterização e análise do tipo de abusos e violência que o artigo traz à luz. Repudiamos tais críticas.
4. “Se não há testemunha, não há crime”
Respeitamos o princípio da presunção de inocência no âmbito judicial, mas condenamos a postura dos presumíveis abusadores que invariavelmente se traduz na falta de reconhecimento do problema; apesar de serem referências na academia para o escrutínio de relações assimétricas de poder no mundo, não chegam sequer a fazer a sua autocrítica. Mais: não permitem que se questione a sua posição de poder nem a violência abusiva que essa rejeição reforça. Isto é flagrante na reação imediata de ameaçar publicamente as autoras com processos por difamação. Esta é também uma reação de quem conhece muito bem os mecanismos da justiça, onde, se não houver testemunhas, existe uma dificuldade acrescida (às vezes impossibilidade) de provar a prática de um crime.
5. A falência da justiça
Os mecanismos de justiça não acompanham as lutas e os processos de justiça social e de género acionados pelos movimentos sociais de base. Os exemplos recentes de mulheres injustiçadas são múltiplos. As queixas de assédio e violência resultam habitualmente na culpabilização da vítima — questionando-se o seu comportamento, em detrimento da acareação dos factos e efectivação da justiça. Este modus operandi, que põe a vítima sob escrutínio e não o agressor, ilude o problema e perverte a obtenção de justiça.
II
A DIFICULDADE EM FALAR
6. Ineficácia dos mecanismos de denúncia
Devido a um contexto que não protege as vítimas/sobreviventes, estas acabam por pagar um preço demasiado alto, quer em termos profissionais, levando-as por vezes a abdicar do seu projecto de vida, quer em termos da sua saúde física, mental e emocional, carregando frequentemente um trauma para a vida. Também as queixas formais junto de instituições e autoridades não são um mecanismo totalmente eficaz. Em consequência, as vítimas são frequentemente dissuadidas de apresentar queixa — até porque, quando o fazem, estas situações tendem a ser abafadas (sendo o caso em debate um exemplo). De forma pérfida, a economia dos rankings, avaliações e prestígio, incentivam e favorecem a impunidade e a inércia. Assim, as instituições preferem não “manchar” o seu nome, evitando investigar casos de assédio sexual, abuso moral e plágio cometidos por membros do corpo docente ou pessoal académico sénior. Em 2022, por exemplo, foi divulgado que um relatório do Conselho Pedagógico da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa recebeu, em apenas 11 dias, 70 denúncias de assédio, 50 das quais “validadas”, envolvendo 31 docentes. Todas as denúncias foram arquivadas e as que prosseguiram, posteriormente, num organismo interno daquela Faculdade, prescreveram.
7. Regimes de validação do discurso
Foi necessário as autoras do artigo acederem aos regimes de validação e revisão cega por pares mais poderosos da academia — o de serem publicadas por uma editora de prestígio, a Routledge — para desencadear uma onda de atenção face a situações de abuso de poder. No entanto, importa frisar que tudo isto se desenrola após várias tentativas de denúncia por parte de investigadoras “do Sul Global” terem sido abafadas ou ignoradas ao longo de anos. Durante este mesmíssimo período, quer através de redes de sussurros quer porque “as paredes começaram a falar”, “todas sabiam”, mesmo que de modo informal.
8. Poder-saber
Cremos ser fundamental expor que existe um processo de extração intelectual que incide sobre grupos que corporizam saberes e conhecimentos situados, e que, no contexto da academia patriarcal e colonial, são usados como recursos a capitalizar. Neste âmbito, as dinâmicas descritas no artigo reproduzem relações de poder-saber e reconstroem modos de produção de conhecimento marcados pelo binarismo dominação–subalternidade. Paradoxalmente, estes domínios são objetos centrais do trabalho de investigação assinado pelos académicos e pelo centro de investigação em causa. Não é por acaso que várias das denúncias subsequentes são de investigadoras ancoradas a contextos que propiciam a sua subalternização, quer por se encontrarem fora dos seus meios sociais, culturais e/ou laborais, quer em função da sua condição económica, social, ou migratória — ou mesmo, pela confluência de todos estes fatores. No quadro de um desequilíbrio de poderes, essas denúncias envolvem, em certos casos, sujeitos cujas posições enunciativas e perspetivas epistemológicas foram historicamente subalternizadas.
9. A ponta do icebergue
Os casos denunciados são apenas a ponta do icebergue. O consentimento íntimo é muitas vezes comprometido por relações de poder e dependência académica. Estas assimetrias de poder levam investigadoras, dependentes da validação da instituição para a sua segurança financeira e até migratória, a obliterar os abusos de que são vítimas como forma de evitar problemas ou retaliações. Este fenómeno também foi reportado no caso em questão. A maioria das vítimas não denuncia por medo, descrença no sistema judicial, estratégia de sobrevivência e até mesmo para preservar as pessoas que a rodeiam, aquelas cuja sobrevivência depende do agressor e muitas vezes até aquelas que pertencem à esfera íntima do abusador. A crescente precarização do trabalho académico está no cerne desta vulnerabilidade. Algumas mulheres manifestaram receio em assinar este manifesto com medo, justamente, de represálias. Porém, o artigo em questão espoletou várias denúncias e seguramente mais se seguirão. À data, no intervalo de dois dias, desde que o artigo foi divulgado, contam-se já dezenas de testemunhos públicos e outras tantas denúncias, todos dando inegável conta de uma realidade conhecida e tolerada há décadas.
III
PRÁTICAS EMANCIPATÓRIAS
10. Salvaguardar o trabalho emancipador
Não está em causa o mérito das importantes e progressistas linhas de investigação desenvolvidas no seio do CES. É precisamente essa confusão que agendas de instrumentalização política, contra pautas emancipatórias, querem criar. É fundamental o reconhecimento dos instrumentos de justiça social e plataformas de práticas críticas historicamente desenvolvidos nos quais estas investigações se sustentaram. Esse reconhecimento não nos pode impedir, nem impede, de constatar as graves falhas por parte da direção do CES na proteção das suas investigadoras. Notamos que, justamente pela inscrição num espaço ideológico e discursivo emancipatório, não se pode pactuar com a impunidade. É numa ecologia de complexidade, conflito e permanente autocrítica que a justiça social interseccional se torna potencialmente alcançável.
11. Por uma universidade pluridiversa e pela interseccionalidade das lutas
Pugnamos por uma universidade que valoriza ideias e práticas progressistas, com capacidade de autocrítica, de aceitar vulnerabilidades e de assumir práticas de cuidado com vista à justiça social e à formação de comunidades solidárias e livres de abuso. Lutamos por uma universidade em que o saber circule horizontalmente e não através de relações de poder, patriarcais e coloniais. Uma universidade pluridiversa, paritária, interseccional e emancipatória. Uma universidade que não seja conivente com a precariedade geral e que não receie o modus operandi feminista, na construção de pessoas libertas dos constrangimentos impostos por papéis e expectativas prescritivas de género, classe, cor de pele, capacitismo ou preceitos culturais. Uma universidade onde os lugares de decisão e de prestígio social não sejam domínio quase exclusivo de homens brancos, e os secretariados e os papéis auxiliares de limpeza e alimentação não se circunscrevam quase unicamente às mulheres (tendencialmente, racializadas ou migrantes precarizadas em funções de limpeza). Uma universidade que rompa com a tradição (que vem de um lugar “de cátedra” e não de escuta) da cultura dos “doutores” e da reprodução dos patriarcas geniais.
12. Interpelamos as Ministras Elvira Fortunato e Ana Catarina Mendes e a FCT
Pedimos à Ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Elvira Fortunato, e à Ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes, bem como à Fundação para a Ciência e Tecnologia que se pronunciem e agilizem recursos no sentido de aprofundar o enquadramento legal para este tipo de casos, nos estabelecimentos de ensino e investigação superior, e que contemplem a necessária obrigatoriedade de códigos e regulações semelhantes, por exemplo, ao “Title IX”, em vigor nos E.U.A.. Acresce que as tutelas da educação e da investigação para a ciência devem criar no imediato condições para que TODAS as instituições de ensino superior tenham um mecanismo de denúncia anónima de situações de assédio sexual e moral, garantias de proteção à vítima e comissões independentes e não endógenas para estabelecimento de medidas preventivas, apreciação das denúncias, instruções de processo e aplicação de sanções.
13. Rede de Solidariedade sabemostodas@gmail.com.
Reconhecendo a necessidade da presunção de inocência para uma investigação de justiça em democracia, seja para pessoas denunciantes ou acusadas, condenamos qualquer tentativa de retaliação sobre as primeiras. Antecipamos a possibilidade de represálias às pessoas signatárias, nomeadamente àquelas com relações institucionais no seio da academia, pelo que estaremos vigilantes e denunciaremos qualquer comportamento punitivo e de retaliação. Não havendo uma rede institucional, constituimo-nos enquanto rede de solidariedade, e estamos disponíveis para escutar quem necessite através do e-mail sabemostodas@gmail.com.
Reafirmamos a nossa solidariedade com todas estas mulheres e todas as vítimas/sobreviventes de assédio.
Apoiamos as que têm a coragem de se organizar, denunciar e interpelar o sistema opressivo e tóxico, obrigando-se, dessa forma, a reviver o trauma.
Estaremos atentas a qualquer tentativa de retaliação e agiremos.
Seremos cada vez mais a denunciar e a apoiar quem desconstrói os alicerces patriarcais e coloniais.
Quem quiser assinar pode fazê-lo para este email sabemostodas@gmail.com.