Rede de Contra Informação

Notícias de comunidades em resistência

SOBRE O PROTESTO NA ZDB NO DIA 14 DE JULHO DE 2023

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https://soundcloud.com/djboilerroom/zdb-natxo-fatxo-dj-set-14072023

Na passada sexta-feira, 14 de Julho, passei som na Galeria Zé dos Bois sob o “alias” de DJ Boiler Room, abrindo a noite para o Yousuke Yukimatsu, um DJ japonês em tournée pela Europa. Alguns dos meus amigos e amigas virtuais que agora lêem estas palavras estiveram lá e foram testemunhas do que aconteceu, mas para quem não esteve parece-me importante resumir brevemente o pequeno protesto que levei a cabo durante a noite. Mas mais importante que resumir esse protesto talvez seja falar publicamente sobre muitas coisas que aconteceram na Galeria Zé dos Bois nos últimos tempos, muitas delas sabidas pelos circuitos do boca-a-boca lisbonense (e não só), mas poucas delas faladas em público e sobretudo com a qualidade crítica e o tom de denúncia que realmente merecem.

Ora, uma coisa de cada vez.

Primeiro, o protesto.

A coisa foi simples e organizada individualmente. Toquei das 22h à 00h e no final do meu set acabei com uma malha do Zé Mário Branco chamada “Remendos e Côdeas” – uma canção de intervenção bastante didáctica (foi, na verdade, composta para uma encenação de “A Mãe”, do Brecht, na Comuna) que fala sobre exploração de classe e exploração laboral e que apela à insurreição dxs exploradxs – isto, claro, num gesto performático bastante disruptivo tendo em conta os “estilos” musicais que passara no meu set até esse momento. A disrupção era obviamente intencional e assinalava o começo do breve protesto que consistiu em 2 passos: 1) uma rápida troca de guarda-roupa em que vesti uma t-shirt onde grafitara as palavras “Natxo Fatxo” (para quem não sabe, o Natxo Checa é há muito tempo o director da ZDB); 2) o desenrolar de uma faixa onde escrevera: “A ZDB explora xs trabalhadorxs”, faixa essa que depois de ter esticado com as mãos durante alguns segundos acabei por colar na mesa do DJ, de frente para o público. Eventualmente, a faixa foi retirada. A t-shirt com o “Natxo Fatxo” a vermelho ficou no meu corpo até ao final da festa, sendo que por sorte (ou azar) não me cruzei com o dito Natxo Checa durante o decorrer da noite (parece que estava a circular pela zona do terraço e que não terá tido vontade de me vir espreitar).

Agora, os motivos que me levaram a fazer este protesto. Convém dizer desde já que trabalhei na Galeria Zé dos Bois durante cerca de um ano e meio, tendo-me despedido em Janeiro de 2023 quando considerei que a exploração laboral tinha atingido um novo limite que já não podia tolerar. Na verdade, esse despedimento era algo que devia ter acontecido há muito mais tempo, mas perceberão melhor os meus motivos com a leitura deste texto. De facto, durante um ano e meio senti que tinha calado a boca durante várias vezes e mesmo as poucas vantagens que existiam naquele trabalho já não eram compensadas por toda a hipocrisia e mal-estar acumulados pela minha consciência ao longo do tempo. Talvez valha então a pena enumerar algumas das coisas mais graves que presenciei durante o ano e meio em que trabalhei na Galeria Zé dos Bois:

– Quando comecei a trabalhar na ZDB em Setembro de 2021 o salário base era de 5€ por hora, a recibos verdes. Depois dos descontos para a segurança social este valor ficaria em qualquer coisa como 3.90€, o que se fosse multiplicado pelas 40 horas semanais de trabalho e pelas 52 semanas anuais (aos quais teríamos de acrescentar a devida retenção do IRS) daria, na altura, menos que o salário mínimo (obviamente, não recebíamos qualquer subsídio de férias nem de Natal). Este valor-tabela de 5€ incluía, claro, todas as horas em que trabalhávamos em bar e durante a noite, sem nenhum subsídio de refeição ou de transporte (muitas vezes terminávamos o trabalho às 4h da manhã, ou mesmo mais tarde, sem nenhum veículo de deslocação que não um Uber ou um Bolt que nos levasse até casa). Como é sabido, é frequente que trabalhos de bar e trabalhos nocturnos (dadas as condições óbvias de cansaço extra + horários irregulares + o stress de ter de lidar com clientes bêbadxs, etc., etc.) sejam recompensados financeiramente. Num bar ao lado da ZDB, também histórico na noite lisboeta, xs funcionárixs recebem 10€ à hora para trabalharem à noite (e há muitos exemplos deste género). Durante o período em que trabalhei na ZDB, nenhumx dxs “trabalhadorxs de baixo” (a nossa equipa algo flutuante variava entre 10 ou 14 pessoas, consoante os meses) estava a contrato. Alguns/algumas trabalhavam no estabelecimento há cerca de 2 ou 3 anos. A única coisa minimamente decente no meio desta embrulhada laboral era que as horas extra eram pagas, embora de acordo com o valor da hora de trabalho normal (os tais 5€) e não segundo a taxa – variável entre os 125% e os 150% – estabelecida legalmente. A falta-de-noção/alienação patronal era tão grande que cheguei a presenciar discussões por parte da direcção sobre se a meia-hora de jantar (meia-hora, atenção!) daquelxes que faziam turno duplo (turno da tarde: 18h/22h + turno da noite: 22h/2h ou 3h aos fins-de-semana) deveria ser paga ou não… Como se essa meia-hora de jantar não fosse má o suficiente (de todas as vezes: bifana e sopa comidas à pressa e, com sorte, tempo para um café escaldado…), ainda passou pela cabeça à direcção da ZDB que esse pequeno intervalo, para dizer o mínimo, não fosse pago! Ora, só para verem o quão absurda é a situação, a 5€ à hora estamos a falar de 2.5€ que queriam tirar do nosso salário… Durante o meu ano e meio na ZDB, e para além das explorações salariais e contratuais (ou propriamente não-contratuais) estabelecidas e aceites como norma, vi várixs colegas que passaram por processos de doença, acidente ou injúria física ou mesmo por processos de aborto serem forçadxs a faltar ao trabalho e a perderem os seus dias de salário (nalguns casos durante mais de 1 mês) e sem grande apoio, não apenas financeiro, como também emocional ou empático por parte da entidade patronal. Não houve qualquer reconhecimento da exploração que já existia enraizada na estrutura laboral e que nesses momentos de dificuldade de alguns/algumas colegas se poderia ter reflectido numa acção redistributiva (por exemplo, pagar-se um X que equivalesse a um subsídio de doença, ainda que mal-amanhado…). Na verdade, isso aconteceu apenas num exemplo, que eu me recorde – e com a oposição do Natxo – mas o valor oferecido foi tão miserável que a pessoa teve de vir trabalhar à mesma – o que apenas agravou o processo de aborto, já de si gradual e complicado (tanto física como psicológica e emocionalmente), pelo qual essa pessoa passava)… Vale também a pena referir os atrasos sistemáticos no pagamento dxs trabalhadorxs e a forma “blasé” com que o Natxo lidava com a situação: “sim, sim, transfiro amanhã…”, adiando a transferência dia após dia como se essa fosse uma questão secundária a resolver na gestão estrutural e laboral da ZDB. Houve meses em que fomos pagos a dia 9 do mês seguinte, quando é sabido que as rendas (apenas para dar o exemplo mais importante e flagrante na vida de qualquer trabalhadorx precárix) têm de ser pagas, no limite, até dia 8. Portanto, total desrespeito e total condescendência pelas necessidades de vida mais básicas dxs trabalhadorxs da ZDB. E isto acontecia praticamente todos os meses.

– Como apêndice à questão salarial dxs trabalhadorxs da ZDB vale também bastante a pena referir os miseráveis cachets dxs artistas convidadxs: não sei como está esse valor agora, mas no período em que lá trabalhei xs designers para os cartazes dos eventos recebiam o valor de 30€ por cartaz (eu pago mais por cartaz para a maioria das festas que organizei na vida, e sempre em espaços de muito menor capacidade de retorno financeiro – além disso, como é óbvio, não sou uma instituição que recebe inúmeros apoios públicos e com receitas asseguradas de bar); quando eu e uma colega organizámos um ciclo de cinema com DJ Sets ou Live Sets a seguir às projecções de cada filme o cachet que nos deram para pagar axs artistas foi de 40€ por noite (nem sequer por artista, mas por noite: ou seja, se convidássemos 2 pessoas para tocar daria 20€ a cada) e o Natxo ainda tentou baixar esse valor de 40€ para 30€ (coisa a que resistimos); e axs artistas musicais portuguesxs que performam na sala de concertos do aquário são comuns cachets por volta dos 100€, o que com recibo ronda os 78€, um valor miserável para as possibilidades financeiras da ZDB. Mas parece que a precarização somítica não só dxs trabalhadorxs do espaço e dxs artistas locais convidadxs é a lei de bases da instituição ZDB. O que está em jogo, na verdade, é uma chantagem obscena a que muitxs espaços submetem xs artistas em Portugal: a simples possibilidade e, no limite, o “estatuto” de tocar ou de performar na ZDB (ou em espaços equivalentes) acabam por nos fazer aceitar esse compromisso com os cachets ridículos e inadmissíveis que deviam ser, no mínimo, contestados e expostos publicamente. Entre receber abaixo de cão ou pura e simplesmente não receber ou não ter a oportunidade de actuar em determinado espaço, a maioria das pessoas cede à miséria salarial e ao pacto com a precariedade (que é também um atentado à dignidade moral, política e económica dxs próprixs artistas e trabalhadorxs).

– Entre Março e Abril de 2022 houve uma série de convulsões internas na relação entre o staff “de baixo” e a direcção. O “álibi” da direcção para querer despedir quase metade do staff activo nesse período fundou-se nos consumos de drogas que se passavam durante o horário de trabalho e no espaço da ZDB. Argumento, sem dúvida, irónico, sobretudo tendo em conta os consumos ostensivos e a compra descarada de drogas no próprio espaço da ZDB por parte dxs membrxs da direcção, em particular do próprio Natxo. Na lista do staff a despedir havia, e apenas para dar um exemplo, uma pessoa que nem sequer consumia drogas (dentro ou fora do horário de trabalho). Tornou-se então claro (e sublinhado por histórias que ouvi de anos passados) que, sazonalmente, a direcção da ZDB despedia xs trabalhadorxs com cuja cara, pura e simplesmente, “não ia à baila.” Comportamento esse absolutamente expectável, pois começava agora a compreender que as políticas da direcção da ZDB eram fundadas sob a capa de um autoritarismo implacável e paranoico, cujo mote era o de que xs “trabalhadorxs de baixo” (o pessoal da porta e do bar) só estavam interessadxs em trabalhar na ZDB para beberem à borla e ficarem a fazer festa depois da hora de fecho. Esqueciam-se, sem dúvida, era de que esses pequenos actos de “rebeldia” ou de puro e simples “festejo”, quando existiam, eram, em primeiro lugar, um escape bem merecido de toda a exploração salarial de base e de toda a relação paranoica, autoritária e violenta em que todo aquele sistema laboral se alicerçava. O gerente dessa altura, que era também um amigo e camarada, opôs-se a este despedimento em massa e acabou por se despedir ele mesmo como forma de protesto. O Natxo, como todo o bom ditador, não queria ser ele a despedir directamente xs trabalhadorxs de quem não gostava, queria que fosse o gerente a fazê-lo. O gerente disse que não e foi-se embora. Vim a perceber com o tempo que esta prática “cobarde” era frequente por parte da direcção: inventavam-se álibis para justificar despedimentos, da mesma forma que se pedia a outrxs que fizessem o trabalho sujo, isto é, que despedissem com as próprias mãos. Isto, aliás, continua a acontecer em vários espaços associativos em Lisboa, onde xs funcionárixs não têm contrato nem nenhuma garantia de protecção do seu emprego. A maioria dxs meus/minhas colegas que estavam na “lista a despedir” acabaram por se despedir elxs mesmxs quando souberam que estavam “blacklisted.” Esse era, justamente, o momento em que estávamos mais organizadxs em termos de solidariedade “entre-colegas” desde que eu começara a trabalhar na ZDB, mas este conflito/despedimento em massa veio acabar com essa organização reivindicativa que estávamos, com muito esforço e coragem, a começar a preparar. Era evidente que várixs dxs colegas que estavam na lista “a despedir” constavam dela apenas por terem mantido algum tipo de discordância/conflito com o Natxo, nomeadamente pelas questões salariais já referidas ou como resistência à sua própria agressividade e “bullying” constantes enquanto patrão. A “purga estalinista” teve, pois, um bom resultado. E eu, na minha hipocrisia e conveniência, permaneci a trabalhar na ZDB.

– Depois de todo este incidente os salários foram miseravelmente subidos, segundo uma lógica de divisão em escalões e mantendo-se a prática dos “falsos” recibos verdes (porque os recibos verdes, como é sabido, são destinados a trabalhos temporários e não a trabalhos permanentes, como era o caso de toda a equipa do staff): o horário diurno semanal e o horário diurno de fim-de-semana permaneciam com o valor (pura e simplesmente inadmissível) de 5€ por hora; o horário nocturno semanal subia para 6.25€ por hora; e o horário nocturno ao fim-de-semana subia para 7€. Em contrapartida, as horas extra foram retiradas. Quando confrontei o Natxo com essa decisão absurda (e obviamente ilegal), ele pura e simplesmente berrou-me na cara: “Neste momento, a ZDB não tem possibilidade de pagar horas extra. Se estás mal, podes arranjar outro sítio.” Ora, dá-se um tostão, tira-se meio, sobe-se (mal e porcamente) os salários, corta-se nas horas extra para compensar! Vale a pena relembrar que a ZDB é neste momento uma das 4 instituições a nível nacional com maior financiamento por parte da DGARTES; que recebe apoios da Câmara Municipal de Lisboa e do Ministério da Cultura; e que a própria ZDB se situa há já vários anos num edifício da Segurança Social no qual não paga renda. Para além de todos estes apoios, é frequente que as receitas do bar do terraço cheguem aos 2 mil euros numa noite de fim-de-semana (+ receitas do bar do aquário quando há concertos, receitas das quotas de exposição, dos próprios concertos, etc.). A pergunta a fazer é: se este dinheiro todo não vai para aos aumentos salariais, então para onde é que vai? [E NÃO DEVERIA SER ESSA A PRIORIDADE???] O próprio estatuto associativo da ZDB confere-lhe inúmeras regalias financeiras, sendo que durante o meu ano e meio de trabalho, em que fiz principalmente trabalho de porta, nunca inscrevi ninguém como sócix porque nunca ninguém me explicou como é que se fazia. Claramente, não era uma preocupação da direcção inscrever novxs sócixs (já para não falar na ilegalidade em causa: a entrada nas associações é reservada, justamente, axs sócixs). Parece, então, que a questão associativa deixou de ser relevante a partir de certo momento e que não passa, pois, de uma fachada conveniente (ou de um álibi) para a obtenção de isenções fiscais e regalias de um espaço que, na verdade, não é mais do que uma empresa ou um negócio privados.

– Em Novembro/Dezembro de 2022 começou a circular o rumor de que o bar do terraço ia fechar para obras e de que a maioria do pessoal do staff ia ser mandado para casa durante algum tempo. Nalgumas noites tinha faltado dinheiro na caixa registadora do bar e por uma ou duas vezes desapareceu dinheiro dos envelopes dos concertos. A direcção da ZDB estava especialmente paranoica com estes incidentes sem explicação nem culpadx aparente e não podíamos deixar de suspeitar que vinha a caminho uma nova purga assente, sem dúvida, num único critério essencial à moda de uma roleta-russa: de quem gostará e de quem não gostará o Natxo, que cabeças rolarão e quais serão deixadas a boiar, quem irá para a rua e quem ficará com o seu lugar? Depois de 2 meses de rumores e sem nenhum comunicado oficial por parte da direcção chegámos ao início de 2023. A maior parte das pessoas não sabia sequer se ia ter dias de trabalho em Janeiro ou não. Eu falei directamente com o Natxo, antecipando toda esta incerteza, e ele pediu-me para vir trabalhar na primeira semana de Janeiro. Depois de fazer alguns dias de trabalho apercebi-me de que as tão anunciadas obras no terraço – que supostamente implicavam uma suspensão indefinida do trabalho de várias pessoas – eram, afinal, meramente residuais e de que tudo não passava de um novo álibi para se despedir pela calada uma outra percentagem significativa dxs meus e minhas colegas (posto de forma simples e pragmática: aquelxs em quem o Natxo não confiava), bem como para despromover o actual gerente a mero funcionário do “staff normal”. Assim sendo, o Natxo passou a ocupar os cargos simultâneos de director da ZDB e de gerente, abrindo o bar do terraço nos dias em que lhe apetecia e ligando em cima da hora ao pessoal para ir fazer os seus turnos. Curioso assinalar que tudo isto foi feito sem que ele tenha avisado sequer o restante pessoal da direcção, à boa maneira de um ditador à antiga. Quando me apercebi de toda esta farsa, da segunda vaga de colegas que tinham sido despedidxs (numa repetição que assim tornava profética a purga de Abril do ano passado) e de que agora, como cúmulo dos meus pesadelos, tinha de lidar com o Natxo na sua dupla função de “director-e-de-gerente”, despedi-me enviando uma mensagem provocadora para o grupo de What’s App poucas horas antes de um dos meus turnos e posteriormente enviando um e-mail para o Natxo em que o confrontava com «as práticas estabelecidas pela própria ZDB, nomeadamente o despedimento sistemático de trabalhadorxs feito sem aviso, sem antecedência, sem esclarecimento e sem aparente motivo. E, claro, sem qualquer sentido mínimo de justiça laboral.» (citação do e-mail enviado). Mas este e-mail, mantido na esfera privada e mais ou menos secreta da comunicação entre um e o outro, pouco ou nenhum efeito real concretizava.

Mas para além das práticas de exploração laboral até aqui referidas, parece-me ainda assim fundamental mencionar outros dois aspectos de não menor importância:

– Em primeiro lugar, a postura violenta e autoritária do próprio Natxo no trato pessoal com xs trabalhadorxs. No meu primeiro mês de trabalho, no aniversário da ZDB, tive a primeira percepção real de quem era o meu patrão quando ele berrou comigo em frente a várias pessoas do staff e clientes por um incidente que nem era da minha responsabilidade (e, na verdade, da responsabilidade de ninguém). Nessa noite, tinha havido uma discussão entre membrxs da direcção e – no meio do álcool e da coca, alvos de tanta crítica quando usados pelo staff de baixo – o Natxo começou a expulsar pessoas (isto é, clientes) da ZDB puxando-as e arremessando-as com as próprias mãos (pessoas que, já agora, eram as convidadas da festa de aniversário…). Nesse momento percebi que a linguagem do Natxo era pura e simplesmente a linguagem instituída e tóxica do macho-patronato assente no assédio laboral constante (ou, por outro nome, a linguagem e o comportamento propriamente fascistas – não em termos necessariamente ideológicos – mas, sobretudo, em termos de trato humano e interpessoal). Não apenas a exploração salarial, laboral, etc., mas também a exploração de toda e qualquer dignidade humana para lá dos aspectos “formais” e económicos, por assim dizer, do trabalho. Ora, todo o trabalho será exploração, sem dúvida, mas há trabalhos em que a relação hierárquica é tão forte que qualquer possibilidade de diálogo entre os diversos pólos de poder é erradicada da comunicação e substituída pela agressividade verbal, pela paranoia, pelo ressentimento e pela humilhação sistemáticos. É então a própria dignidade humana, na sua totalidade, que é obliterada e x trabalhadorx é exploradx não apenas económica e politicamente, mas em todas as dimensões da sua subjectividade e da sua integridade moral. Não tenho pudor em afirmar que por diversos momentos senti mesmo medo da figura e da presença do Natxo. Saber que ele estava presente na ZDB produzia em mim um sinal de desconforto automático (e continua a produzir: falo das 3 ou 4 vezes que lá fui depois me ter despedido). Ainda assim não me posso queixar muito, pois estou bem consciente da natureza social dos meus diversos privilégios. Mas vi o Natxo ser misógino com as minhas colegas mulheres, transfóbico com as minhas colegas trans, xenóbofo com os meus colegas imigrantes ou classista com aquelxs que não provinham de um background elitista ou burguês. Qualquer assimetria de poder podia ser usada pelo Natxo como forma de agressão, como insulto, como humilhação. Mas, sobretudo, uma coisa era certa: o Natxo podia gritar com quem quisesse, podia berrar, vociferar, humilhar. Isto é uma coisa, aliás, bastante sabida nos circuitos artísticos de Lisboa, talvez até mais do que a própria exploração laboral/salarial que se passa no interior da ZDB. Diria até que faz parte de um certo carisma patriarcal de «self made-man/comerciante labrego “grito-com-quem-eu-quiser/faço-o-que-eu-quiser” do mundo das artes» que o Natxo construiu para si mesmo.

– Em segundo lugar, gostava de mencionar o facto de ser prática estabelecida de que só “artistas” seriam admitidxs para staff da ZDB. Na altura em que eu entrei na ZDB isto era provavelmente a questão mais importante que se colocava na entrevista de emprego. Passando ao lado da discussão (que ainda assim não deveria ser ignorada) em torno do quão genérica e absurda é esta categoria do “ser-artista”, o certo é que durante um ano e meio tive como colegas dezenas de cineastas, pintorxs, músicxs, escultorxs, etc. Uma riqueza de talento proliferava naquela equipa. Mas acham que a direcção da ZDB envolvia alguma destas pessoas nas actividades artísticas do espaço? Estamos a falar de um lugar que está aberto 6 dias por semana, 8 horas por dia e ao fim-de-semana 9 horas. Se a equipa que trabalhava nas posições de baixo (fazer de porteirx, vender bilhetes para exposições e concertos, servir imperiais e gin tónicos para turistas) fosse minimamente envolvida na programação da ZDB, já imaginaram o potencial ilimitado daquele espaço? Em vez disso, a mesma relação desconfiada de sempre, paranoica, classista, traiçoeira, que preferia manter toda aquela malta “das artes” (segundo a própria nomenclatura em vigor) no seu trabalho automatizado (e silenciado) de abrir barris de cerveja. Havia excepções, claro, mas meramente residuais e resolvidas a ferro e fogo com os mesmos baixos salários de sempre (30€ por cartaz, por exemplo…). A dada altura esta era uma das questões que eu e xs meus/minhas colegas mais discutíamos entre nós, pela surdina, sonhando com uma qualquer insurreição utópica, pois esta era, sem dúvida, uma das coisas que mais nos revoltava, talvez até mesmo mais do que os baixos salários e os insultos humilhantes do Natxo. Porque, como é evidente, não podíamos deixar de nos sentir “tokenizadxs”, instrumentalizadxs, objectificadxs. Por palavras ditas a bom tom pelo próprio Natxo, e não apenas por ele, não era difícil de entender que a insistência na obrigatoriedade ou preferência de um staff composto exclusivamente por artistas não passava de uma fachada bem conveniente à própria ZDB: em primeiro lugar, porque assim se tratava de projectar para fora uma imagem de “albergue protector dxs artistas pobrezinhxs à procura de emprego e em início de carreira” (isto, claro, para quem não soubesse dos salários e das condições laborais e humanas ali praticadas); em segundo lugar, porque xs artistas do staff trariam outrxs amigxs artistas para frequentarem o espaço, o que era uma forma bastante interesseira – e, na verdade, bem inteligente – de manter uma certa aura “artístico-boémio-diletante” que fizera, em parte, a fama da própria ZDB. Mas tudo isto não passava de fachada e de conveniência para o próprio patronato e para a imagem que insistiam em projectar do espaço (imagem essa bastante desadequada e contraditória, na verdade, tendo em conta o quão se empenharam, por outro lado, em encher a ZDB de turistas com a simples intenção de fazer lucro.)

[Apenas como breve nota, e a propósito deste último ponto: outra das práticas comuns do Natxo Checa era, justamente, a de gritar com a pessoa da porta quando esta barrava a entrada da ZDB durante uns minutos para tentar aliviar o trabalho dxs colegas do bar do terraço (as filas de turistas, aos fins-de-semana de Verão, eram tão grandes que xs próprixs clientes subiam os não sei quantos lances de escadas, chegavam enfim ao bar e logo a seguir desistiam de consumir fosse o que fosse, ou sequer de permanecer no espaço, voltando a descer as escadas e saindo do edifício). Mas o Natxo insistia que “é para deixar entrar toda a gente!” O que importa se a malta do bar do terraço tem uma fila de 50 turistas para atender, se está a faltar o gelo, os copos, se toda a gente está no lodo. Elxs que se amanhem, claro! É o salve-se quem puder! Queremos é ver a guita a entrar no cofre!]

Podia continuar a enumerar todos os pequenos incidentes que foram acontecendo ao longo deste ano e meio. Mas creio que estas linhas baseadas sobretudo na minha própria experiência e testemunho empíricos (imaginem todas as outras coisas que terão acontecido em todos os anos de exploração em que eu não trabalhei naquele sítio…) definem bastante bem que tipo de instituição é a ZDB. Estas coisas são, na verdade, bem sabidas por muita gente, mas a falta de união e espírito reivindicativo são tão grandes na nossa pequena comunidade citadina que é difícil fazer barulho mesmo quando as coisas escalam até estes limites. Em parte, porque as pessoas não acreditam que as coisas vão mudar e este desespero e descrença são, em parte, válidos (resultando, infelizmente, numa espécie de niilismo e conformismo generalizados). Em parte, também, porque toda a gente das “artes” (mesmx xs que foram exploradxs por esta instituição ou por outra) querem um dia tocar na ZDB ou expor na ZDB ou performar na ZDB (o que resulta num ainda mais infeliz cinismo partilhado – também ele, evidentemente, com o seu grau de justificação: “se não podes vencê-lxs, junta-te a elxs”, assim diz o lema). E sabemos bem o quão vingativas e paranoicas são as instituições, o quão não permitem qualquer gesto de contestação ou de crítica. Se ousas levantar um dedo, sussurrar uma palavra, ficas marcadx para sempre.

[Alguma vez voltarei a mostrar um filme no IndieLisboa? Alguma vez voltarei a tocar na ZDB?]

A ZDB é, justamente, essa instituição: autoritária, exploradora, paranoica, vingativa. Pessoalizada na figura do Natxo, tal e qual um Mao Tsé-Tung totalitário armado em curador pequeno-burguês dos tempos modernos (Natxo = ZDB / Mao = China), a ZDB aproveita-se, e bem, do seu estatuto “alternativo”: afinal, a ZDB começa nos anos ’90 como espaço ocupado em que inicialmente se terão praticado modelos de gestão colectiva e autónoma (mas, veja-se a ironia, no final só “sobrou” o Natxo, todxs xs outrxs membrxs iniciais sendo “purgadxs” ou desistindo das suas funções) e que nessa época terá albergado as correntes artísticas marginais, militantes, o chamado “underground” (e todos esses chavões ridículos que ainda hoje estão tanto na moda). E, em todo o rigor, continua a fazê-lo (ou a tentar): apenas para dar um exemplo, a ZDB alberga presentemente uma exposição do Pablo Echaurren, o pintor e escritor italiano cuja obra assenta pictórica e conceptualmente num desconstrutivismo irónico, lúdico e subversivo (assumidamente) esquerdista e revolucionário (o nome da exposição é, claro: “La Révolution R.S.V.P” – e como poderia deixar de ser?, a revolução é sempre boa para lavar a imagem!). Precisamente, e a propósito desta exposição, organizou-se também na ZDB, há coisa de umas semanas, um ciclo de cinema com filmes italianos sobre as grandes lutas revolucionárias na Itália dos anos ’60 e ’70. Tivemos, como novo exemplo paradigmático, a oportunidade de ver filmes do documentarista experimental (e ultra-militante-de-esquerda) Alberto Grifi, cineasta do período mencionado cujos filmes são praticamente desconhecidos em Portugal.

Ora, tudo isto não passa de um “washing” descarado de todas as políticas exploratórias e fascistas que acontecem no interior da própria ZDB, da mesma forma que a programação altamente panfletária e (pseudo) revolucionária do IndieLisboa na edição de 2023 não procurava senão camuflar o protesto que ocorrera em palco no ano passado e com cujxs organizadorxs a direcção do Indie não procurou nenhum tipo de contacto, diálogo ou entendimento. O protesto real é abafado e contorna-se, pois, a questão com uns pozinhos de perlimpimpim revolucionário a apimentar a programação.

«Problema resolvido! Somos de esquerda! Next!»

Durante o ano e meio em que trabalhei na ZDB e mesmo nos meses seguintes não consegui (e não conseguimos) organizar nenhum tipo de protesto colectivo contra as injustiças que tinha e tínhamos testemunhado. Pensei várias vezes nisso, se não era importante realizar um qualquer protesto público, inclusive no momento de apresentação do “Frágil” na própria ZDB, em Setembro de 2022. Houve várias razões para que isso não tivesse acontecido – uma delas, sem dúvida, a minha própria hipocrisia. Mas também, em grande parte, a falta de organização real (proto-sindical, solidária, activa, chamem-lhe o que quiserem) no próprio local de trabalho. E o facto (também com a sua relevância, a vários níveis) de não estar disposto a abdicar daquele posto de trabalho, pelo menos naquele momento.

Surgiu finalmente a oportunidade de fazer esta denúncia que há muito tempo era devida. Não consegui ir simplesmente tocar no local onde fora explorado e onde vira colegas serem humilhadxs, mal-pagxs e despedidxs sem qualquer motivo ou aviso. Não consegui ir apenas jantar com a equipa de produção e o DJ famoso que tocou no Boiler Room (lol), com o jantar (este, sim, pago) e uma hora e meia para comer tranquilamente, quando há um ano atrás tinha de jantar em meia-hora, sem subsídio de alimentação, comendo à pressa a tal porra da bifana, da sopa e do café escaldado. E apesar de acreditar que a um nível ideal os protestos devem ser feitos colectivamente, decidi que não podia deixar escapar esta ocasião, ainda que tivesse de agir de forma algo individual e solitária (ainda assim contei com a ajuda de uma pessoa que me é muito querida e que me ajudou a preparar a faixa e o stencil – obrigado!). E se, no fim de contas, decidi agir desta forma foi não apenas pela minha própria dignidade enquanto sujeito que se debate com a exploração do mundo e que deve forçosamente intervir de alguma maneira, mesmo quando não tem a certeza absoluta (e quem a tem?) do certo e do errado, mas também pela dignidade de todxs aquelxs que foram exploradxs pela instituição ZDB e pela pessoa do Natxo Fatxo e que nessa noite em que fui tocar (regressando assim ao meu antigo local de trabalho, mas desta vez numa posição bem mais privilegiada, como artista convidado) não tiveram a hipótese de poder jantar calmamente com o artista famoso japonês cujo cachet para 3 horas de DJ Set é provavelmente superior ao que faríamos num mês de trabalho e de exploração a servir cervejas a turistas bêbadxs.

Não vou – necessariamente – deixar de ir à ZDB (a não ser que me barrem a entrada), tal como não vou – necessariamente – deixar de actuar na ZDB (isto, claro, se alguma vez me voltarem a convidar seja para o que for, o que duvido que aconteça), da mesma forma que não vou necessariamente deixar de ir ao Lux, ao Boom ou ao IndieLisboa, ou a qualquer outra instituição ou empresa que tenha criticado nos últimos tempos. Tenho queridxs amigxs que continuam a trabalhar na ZDB, tenho performances ou concertos que quererei ir ver. E com o que tenho pensado, feito e vivido nos últimos anos em termos de protesto e de reivindicação cada vez acredito menos que a verdadeira crítica política seja necessariamente realizada por actos de abstenção ascética que nos salvem das denúncias moralistas da hipocrisia. Falo, por exemplo, da recusa radical em ir ao Lux, da recusa radical em comer um Cheeseburger, da recusa radical em ver um episódio da Netflix (embora tudo isso seja, evidentemente, válido; o boicote permanece uma estratégia em jogo e podemos utilizá-la se assim o entendermos). Mas não posso deixar de mencionar um tal assunto pois tenho reparado que é sempre mais fácil focarmo-nos na suposta hipocrisia daquelxs que contestam – e com xs quais não temos nada a ganhar, pois, em todo o rigor, são iguais a nós – e não na verdadeira hipocrisia das instituições, essas das quais esperamos sempre receber algo em troca, mas que por debaixo do seu traiçoeiro manto de cordeirinho democrático-de-esquerda escondem, de facto, a boca salivante do lobo fascista e explorador.

Mais importante do que ir ou não ir, ou do que alinhar ou não no jogo patético e hedonista do consumo (mas, caramba, também merecemos um pouco de prazer, ou será que não?), mais importante que tudo isso é simplesmente não calar a boca. E se um dia deixar de ir a qualquer um destes espaços (seja a ZDB ou seja o Lux) será porque finalmente me barraram a entrada, porque me tornei demasiado incómodo e me expulsaram ao pontapé, e não porque me tornei na Madre Teresa de Calcutá (já fui em tempos, não preciso de voltar a ser).

Cada vez acredito mais nisto: estes espaços estão ao nosso alcance para serem disputados. Não são para abdicarmos deles, são para lutarmos por eles. Porque lugares como este deviam realmente pertencer-nos e não às instituições hierárquicas, opacas e totalitárias e aos palhaços fascistas que as governam.

Não abdicarei do meu prazer, mas também não abdicarei da minha revolta. O futuro é incerto, mas a luta continua sempre.

E citando a malha do Zé Mário Branco com que terminei o meu set:

«Nós não precisamos só desse remendo

Precisamos do casaco por inteiro

Nós não queremos ficar só com essa côdea

Precisamos de comer o pão inteiro

Não nos basta que o patrão nos dê trabalho

Precisamos de mandar nas oficinas

Nos campos e nas minas, no poder de Estado

Disso é que precisamos

Mas o que é que essa gente tem para oferecer?

Remendos e côdeas!»