Rede de Contra Informação

Notícias de comunidades em resistência

Carta Aberta por Serviços Sensíveis ao Género 

Subscreve: https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSff2q1C7lRo8xwPuY0CmMJ82q5IBhV0cGaocY5ZkOrco5iQ4A/viewform

Segue as Manas: https://www.instagram.com/manasaferspace/
Segue o GAT: https://www.gatportugal.org/

A 26 de junho assinala-se o dia de ação Apoie. Não Puna[i] (no original Support. Don’t Punish) – é uma campanha global de pessoas que apoiam a redução de danos e as políticas de drogas que dão prioridade aos direitos humanos e à saúde pública. Apoie, Não Puna tem como objetivos: – colocar a redução de danos nas agendas políticas através do reforço da capacidade de mobilização das comunidades de pessoas que usam drogas e dos seus aliados; – abertura do diálogo com os decisores políticos; – sensibilizando os meios de comunicação social e o público.

Nos últimos anos a Campanha Apoie. Não Puna com Foco nas Mulheres[ii] (SDP FOW, na sigla original) tem sido uma oportunidade para focarmos a atenção nas necessidades específicas das mulheres que usam drogas, nas múltiplas discriminações que as afetam e nas medidas que urge implementar.

Muito se tem conquistado na luta pelos direitos das pessoas que usam drogas a nível mundial e Portugal em particular tem servido de exemplo pela sua decisão vanguardista de descriminalizar o uso de drogas.

É o dia de celebrar essas vitórias. Mas é também a altura de refletir sobre abordagens futuras que permitam dar resposta aos inúmeros problemas que persistem e fazer frente às ameaças de retrocesso que surgem ou se adivinham. É neste espírito que redigimos esta carta.

Advogamos pelos direitos de todas as pessoas que usam drogas, mas nesta carta consideramos urgente chamar a atenção para as discriminações e dificuldades enfrentadas pelas que se identificam como mulheres cisgénero, pessoas trans, não-binárias ou com outra identidade de género não conformista, a que doravante nos referiremos como mulherxs*.

Entendemos que este grupo de pessoas está particularmente vulnerável – perceção que vemos confirmada em dados nacionais[iii] e estatisticamente, na sua exposição desproporcional ao estigma e à violência[iv], seja na intimidade, na comunidade ou no acesso a serviços públicos[v]. Entendemos também que estas vivências se produzem não só em função do género, mas que se multiplicam através da interação do género com a atribuição racial, classe, capacidade, orientação sexual, religião, idade, entre outros eixos de identidade, plurais e simultâneos, concretizados no conceito de interseccionalidade.

Acreditamos que o consumo de drogas por si, em público ou privado, não constitui crime, nem doença, mas sim uma fruição do direito ao próprio corpo, à autodeterminação e à vivência do espaço coletivo.

Cremos que uma narrativa securitária (que pretende enquadrar o consumo de drogas como um problema de segurança pública) e patologizante (que procura retratá-lo, independentemente da forma e contexto, como doença mental) sedimenta a discriminação sistémica e sistemática de que estas pessoas são alvo.

Por discriminação sistémica entendemos algo estrutural, enraizado no quotidiano, traduzindo-se em estigmatização e marginalização nos sistemas políticos, legais e de saúde. Por se verificar que estas desigualdades e dificuldades são contínuas e constantes, consideramo-las, também, sistemáticas.

Posto isto, no âmbito das respostas sensíveis ao género e com base nos mais recentes dados nacionais, na mais recente evidência científica e em documentos orientadores de organizações europeias e mundiais, pedimos que sejam tomadas medidas urgentes, incluindo:

1. Ao poder central

a) Equidade, participação e representividade das mulherxs* que usam drogas em todas as áreas relevantes, incentivando e apoiando substantivamente o seu envolvimento e liderança na concepção, aplicação e avaliação de políticas e serviços relevantes .

b) Equidade no acesso à saúde, aos serviços de redução de riscos e minimização de danos e aos recursos de apoio para pessoas que experienciaram violência de género, assegurando que estes integram e refletem a sensibilidade ao género no âmbito e na prestação dos serviços .

c) Criação de serviços de redução de redução de riscos e de minimização de danos integrados e sensíveis às questões de género e de ambientes institucionais que não julguem, não discriminem, sejam seguros, relevantes e apoiem todas as mulherxs* que usam drogas .

d) Redução da discriminação e da violência sistémica contra as mulherxs* que usam drogas, incluindo as que vivem com o VIH, as que se dedicam ao trabalho sexual, assegurando simultaneamente mecanismos de denúncia não discriminatórios, acessíveis e seguros .

e) Co-produção de legislação e recomendações que suportem a criação e disseminação de espaços sensíveis ao trauma para acolher mulher*s que usam drogas, incluindo espaços de acolhimento de emergência.

f) Defesa do direito à autonomia sobre o corpo das mulheres e das pessoas com identidade de género diversa que usam drogas, incluindo as escolhas relativas a um uso de drogas mais seguro.

g) Eliminação da discriminação e do encarceramento de mulherxs* envolvidas em infrações não violentas de baixo nível, em conformidade com as Regras de Banguecoque  – ou seja, que pessoas que usam drogas ou que estejam inseridas no tráfico não violento não sejam condenadas a penas de prisão e que os contextos de múltiplas sobrevivências sejam tidos em conta nos processos penais .

h) Pôr termo à utilização do uso de drogas como motivo de invasão ou perturbação da privacidade, da vida familiar ou doméstica.

i) Salvaguarda efetiva dos direitos custodiais maternos de modo a que, na ausência de maus tratos físicos ou negligência, o apoio materno e a prestação de cuidados às crianças se tornem respostas normais.

j) Consideração da dimensão do género na orçamentação e a inclusão de ações concretas para mulherxs* nos planos nacionais, concursos para financiamento público ou mesmo a abertura de concursos específicos, assegurando que até 2026, 80% dos serviços para as mulherxs*, incluindo serviços de prevenção para as mulheres em risco acrescido de contrair o VIH, bem como programas e serviços de acesso ao teste do VIH, ligação ao tratamento, apoio à adesão e retenção, redução ou eliminação da violência contra as mulherxs*, redução ou eliminação do estigma e da discriminação relacionados com o VIH entre as mulherxs* que usam drogas, literacia jurídica e serviços jurídicos específicos para questões relacionadas com  mulherxs* que usam drogas, são prestadas por organizações comunitárias dirigidas por mulheres .

k) Atribuição de recursos e financiamento a longo prazo a serviços e redes de redução de danos que sejam dirigidos por mulheres e pessoas de identidade de género diversa que consomem drogas e que envolvam significativamente essas pessoas, e que se baseiem em cuidados, solidariedade e autonomia individual, incluindo

l) Inclusão de análises e indicadores de género e interseccionais nos estudos epidemiológicos na área das drogas.

2. Poder regional e local

a)    Assegurar que até 2026, 80% dos serviços para as mulherxs*, incluindo serviços de prevenção para as mulheres em risco acrescido de contrair o VIH e VHC, bem como programas e serviços de acesso ao teste do VIH e VHC, ligação ao tratamento, apoio à adesão e retenção, redução ou eliminação da violência contra as mulherxs* que usam drogas, redução ou eliminação do estigma e da discriminação relacionados com o VIH entre as mulherxs* que usam drogas, literacia jurídica e serviços jurídicos específicos para questões relacionadas com as mulherxs* que usam drogas, são prestadas por organizações comunitárias dirigidas por mulherxs*[xiii].

b)    Assegurar que até 2026, 60% dos programas que apoiam a facilitação de promoção social, incluindo programas destinados a reduzir ou eliminar o estigma e a discriminação relacionados com o VIH; sensibilização para promover ambientes jurídicos favoráveis; programas de literacia jurídica e de ligação a apoio jurídico; e a redução ou eliminação da violência com base no género, são realizados por organizações lideradas pela comunidade de pessoas afetadas.[xiv]

c)    Apoio à prevenção da violência de género, bem como serviços de sobrevivência para as mulherxs* que usam drogas através de respostas de redução de danos.

d)   Implementar redes de recursos de violência de género desenvolvidas e implementadas pelas autarquias que integrem abordagem específicas para mulherxs* que usam drogas e/ou que fazem trabalho sexual, que vivem com VIH e que experienciam outras situações de vulnerabilidade.

e)    Garantir a disponibilidade de espaços seguros e sensíveis ao trauma para de acolhimento e alojamento de emergência, adaptado às necessidades de saúde específicas das mulherxs* que usam drogas, fazem trabalho sexual, que vivem com VIH e que experienciam outras situações de vulnerabilidade.

f)   Consolidar redes territoriais colaborativas para responder às necessidades complexas de mulherxs* que usam drogas, que articulem respostas na área das drogas, saúde sexual e reprodutiva, saúde mental, respostas de apoio a pessoas que experienciaram violência de género e apoio social.

g)    Contribuir para os diagnósticos territoriais com perspectiva de género, que descrevam e incluam indicadores e necessidades específicas de mulherxs* que usam drogas.

h)  Criar e fomentar espaços de acolhimento para mulherxs* que usam drogas e seus filhos, com base no feminismo interseccional, direitos humanos e das políticas de cuidado e éticas “do no harm”, incluindo espaços mais seguros, incluindo para as trabalhadoras do sexo, mulheres que vivem com VIH, etc- l[xv].

3. Profissionais e serviços

a)    Focar a intervenção em abordagens centradas nas pessoas utilizadoras de serviços (as suas necessidades, experiências, processos de vulnerabilização e exposição ao risco) e não apenas nos riscos associados ao uso de determinadas drogas[xvi].

b)    Garantir que os cuidados de saúde, incluindo aqueles dirigidos para pessoas grávidas, acolhem todes a necessitar de tratamento ou cuidado, independentemente do uso de drogas que fazem, devendo também estas infraestruturas possuir elementos de redução de riscos, incluindo Tratamento por Substituição Opiácea.

c)    Formar adequadamente técnicos e pares que trabalham nos serviços de atendimentos primários (gabinetes de apoio à vítima, centros de saúde, hospitais, etc.) para o acolhimento específico desta população.

d)    Formar adequada das forças policiais e autoridades de saúde para a abordagem de pessoas que usam drogas sobreviventes a múltiplas violências, incluindo medidas de redução de riscos e minimização de danos.

e)    Disponibilizar de apoio à guarda de crianças nos serviços para mulherxs* que usam drogas.

f)     Disponibilizar horários específicos de atendimento, considerando as múltiplas vulnerabilidades a que estas mulherxs* são expostas, garantindo um serviço descentralizado de atendimentos sociais e de saúde, incluindo respostas de saúde sexual e reprodutiva, de saúde mental e de promoção do empoderamento e da participação cívica; e a expansão dos cuidados de saúde em locais fixos de modo a incluir serviços de proximidade móveis, com horários flexíveis.

g) Distribuição de recursos informativos, educativos e de comunicação específicos.

h) Adotar uma abordagem transversal a todos os serviços de violência de género e redução de riscos no âmbito da melhoria da referenciação e acolhimento também de vítimas de violência de género, que usam drogas e sobrevivem a múltiplas vulnerabilidades fomentando a formação de profissionais de saúde e mediadores de pares para um acolhimento inclusivo e transdisciplinar.

Notas e Referências

[i] Ver https://supportdontpunish.org/

[ii] Ver relatórios das Campanhas em anos anteriores  2019 : 2020 : 2021 : 2022

[iii] Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) (2018). Padrões de Consumo e Problemas Ligados ao Uso de Drogas Uma Análise em Função do Género. Disponível em

[iv] Stoicescu C, Richer A,  Gilbert L (2021) Nexus of Risk: The Co-occurring Problems of Gender-based Violence, HIV and Drug Use Among Women and Adolescent Girls. The Impact of Global Drug Policy on Women: Shifting the Needle, 49–57.

[v] Nougier, M. (2016) The Portuguese model for decriminalising drug use. Gender and drug policy: Exploring innovative approaches in drug policy and incarceration. IDPC, WOLA, Dejusticia, COM.

[vi] UNAIDS (2021). Global AIDS Strategy 2021–2026. End inequalities.End AIDS. Disponível em https://www.unaids.org/en/resources/documents/2021/2021-2026-global-AIDS-strategy

[vi] UNODC (2015). Addressing the specific needs of women who inject drugs. Practical Guide. Disponível em https://www.unodc.org/documents/hivaids/2016/Addressing_the_specific_needs_of_women_who_inject_drugs_Practical_guide_for_service_providers_on_gender-responsive_HIV_services.pdf.

[vii] Pompidou Group (2016). Improving the Management of Violence Experienced by Women who Use Psychoactive Substances. Disponível em https://www.drugsandalcohol.ie/25383/1/Pompidou_Women_Drugs_and_Violence_en.pdf

[viii] Shirley-Beavan S, Roig A, Burke-Shyne N, Daniels C, Csak R (2020), Women and barriers to harm reduction services: a literature review and initial findings from a qualitative study in Barcelona, Spain, Harm Reduction Journal, 17(1):78.

[ix] Group of Experts on Action against Violence against Women and Domestic Violence (GREVIO) (2019). GREVIO’s (Baseline) Evaluation Report on legislative and other measures giving effect to the provisions of the Council of Europe Convention on Preventing and Combating Violence against Women and Domestic Violence (Istanbul Convention). Disponível em https://rm.coe.int/grevio-reprt-on-portugal/168091f16f

[x] Bangkok Rules, disponível em https://www.unodc.org/documents/justice-and-prison-reform/Bangkok_Rules_ENG_22032015.pdf

[xi] OHCHR (2019) Portuguese Survey – In reference to HRC resolution 42/22 requesting a study on arbitrary detention relating to drug policies.

[xi] Shirley-Beavan S, Roig A, Burke-Shyne N, Daniels C, Csak R (2020), Women and barriers to harm reduction services: a literature review and initial findings from a qualitative study in Barcelona, Spain, Harm Reduction Journal, 17(1).

[xii] UNAIDS (2021). Global AIDS Strategy 2021–2026. End inequalities.End AIDS. Disponível em https://www.unaids.org/en/resources/documents/2021/2021-2026-global-AIDS-strategy

[xiii] Idem

[xiv] Idem

[xv] Shirley-Beavan S, Roig A, Burke-Shyne N, Daniels C, Csak R (2020), Women and barriers to harm reduction services: a literature review and initial findings from a qualitative study in Barcelona, Spain, Harm Reduction Journal, 17(1).

Portugal, 26 de junho de 2023