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Câmara Municipal de Lisboa não quer Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas

Djass – Associação de Afrodescendentes

COMUNICADO: Câmara Municipal de Lisboa não quer Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas

Em 2017, a proposta de criação de um Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas foi uma das vencedoras do Orçamento Participativo de Lisboa desse ano. Cinco anos e meio depois, esta proposta da sociedade civil, apresentada pela Djass – Associação de Afrodescendentes, ainda não foi construída e os obstáculos à sua concretização permanecem.

Precisamos de recuar a fita do tempo para entender o que se passa, e o que se passou, com este tão importante projeto de reparação histórica.

A Djass decidiu desde o início, e temos a convicção que decidimos bem, que no que dela dependesse, este seria um processo participativo. Para tal, criou um grupo consultivo formado por ativistas e especialistas que apoiaram a elaboração dos termos de referência do projeto, convidou várias/os artistas a apresentar propostas e organizou sessões públicas em diversos locais da Área Metropolitana de Lisboa para divulgação e votação das propostas. Estas atividades, pela sua natureza participativa, estenderam-se ao longo de 2018 e 2019.

Com o fim das sessões para votação das propostas e encontrado o projeto vencedor, o projeto “Plantação”, do artista angolano Kiluanji Kia Henda, o resultado foi comunicado à Câmara Municipal de Lisboa (CML), entidade responsável pelo Orçamento Participativo da cidade e, por conseguinte, pela implementação do projeto.

Pouco depois, a pandemia de Covid-19 atingiu Portugal. As medidas para contenção da pandemia influenciaram a progressão do processo, atrasando-o. Ainda assim, os trabalhos não pararam. Foram fabricados dois protótipos das canas-de-açúcar que compõem o Memorial, que, em janeiro de 2021, foram sujeitos a testes no local aprovado pelo executivo da CML para a implantação do Memorial, o Largo José Saramago, no centro histórico de Lisboa.

Dos testes realizados e das discussões técnicas entre a CML, o artista e a equipa que com ele colabora na produção do Memorial e, ainda, com o arquiteto João Carrilho da Graça, autor do projeto de requalificação do Largo, resultou a necessidade de ajustamentos ao projeto inicial, que implicaram, entre outras, alterações no pavimento e nos materiais e número das estruturas a instalar (canas-de-açúcar), de modo a reduzir a densidade visual da obra.

Entretanto, em setembro de 2021, as eleições autárquicas ditaram uma mudança no executivo municipal em Lisboa, com a vitória da coligação liderada por Carlos Moedas. Face à nova composição da CML, a Djass tinha a expectativa que, após o período inicial de transição de pastas, necessário para se inteirar do assunto, a Câmara entrasse em contacto para retomar o processo de implementação do Memorial, mas a verdade é que esse contacto nunca aconteceu. Face ao silêncio do novo Executivo, a Djass tomou a iniciativa de solicitar uma reunião, que só viria a ter lugar em setembro de 2022, quase um ano depois da tomada de posse.

Nessa reunião, que contou com a participação do Vereador da Cultura, Diogo Moura, a CML garantiu que continuava empenhada na concretização do projeto e comprometeu-se a avaliar a possibilidade de aumento do orçamento para o efeito, atendendo não só às alterações ao projeto exigidas pela Câmara e pelo arquiteto Carrilho da Graça, mas também ao significativo aumento do custo das matérias-primas necessárias à produção e instalação do Memorial, provocado, sobretudo, pela guerra na Ucrânia.

Nesta reunião, surpreendentemente, a CML levantou ainda a questão da obrigatoriedade de obtenção de dois pareceres, um à Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), atribuída ao facto de o local de implantação do Memorial se situar numa área classificada, e um outro à EMEL, empresa municipal responsável pela gestão do parque de estacionamento subterrâneo existente no local. Esta condição nunca tinha sido invocada no decorrer de todo este processo, sendo de estranhar que só no final de 2022 a CML decida solicitar os dois pareceres acima referidos. O processo tem sido acompanhado desde o início (2017/2018) por várias/os técnicas/os e dirigentes de serviços do Município e, por outro lado, a localização do Memorial no Largo José Saramago não só foi proposta pela Câmara, como foi incluída na proposta de criação do Memorial e, numa segunda fase, de um Centro Interpretativo, aprovada por unanimidade em reunião da CML realizada no dia 26 de junho de 2019.

Apesar de insistentes contactos por parte da Djass, foi preciso esperar quase sete meses para que a Câmara recebesse novamente a Associação e a equipa técnica que trabalha com o artista Kiluanji Kia Henda, que se encontrava ausente do país, para um ponto de situação sobre o andamento do processo.

Nesta segunda reunião, realizada no dia 14 de abril, a CML confrontou-nos com uma reviravolta lastimável. Informou que os pareceres solicitados à DGPC e à EMEL foram desfavoráveis, impedindo a colocação do Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas no Largo José Saramago, conforme acordado anteriormente. Como alternativa, a Câmara propôs uma nova localização: um corredor de acesso a um cais situado na Doca da Marinha, próximo do terminal de cruzeiros de Santa Apolónia.

Esta proposta é para nós inaceitável. Não só representa mais um dos expedientes dilatórios que a Câmara Municipal de Lisboa tem usado para atrasar, se não mesmo impedir, a colocação do Memorial, como levanta dúvidas sobre a boa-fé do atual executivo autárquico em todo este processo.

Além disso, os referidos pareceres – que não foram partilhados pela CML na reunião de 14 de abril deste ano, mas foram posteriormente solicitados pela associação Djass – não são, na verdade, pareceres formais, mas apenas uma opinião sumária e informal das duas entidades já mencionadas, sem qualquer carácter vinculativo, enviadas em resposta a uma consulta, também ela informal, realizada pela Câmara.

Acresce que, pelo menos no caso da DGPC, a consulta realizada pela CML foi mal instruída, tendo sido ilustrada com imagens de um projeto que não existe, que não é o projeto de Memorial criado por Kiluanji Kia Henda, mas um exercício realizado, de forma abusiva, pelo arquiteto João Carrilho da Graça, envolvido no processo ainda pelo anterior Executivo da CML por ser o autor do projeto de requalificação do Largo José Saramago. Seja por negligência grosseira ou por flagrante má-fé, não é aceitável que a Câmara Municipal de Lisboa tenha recorrido a imagens indevidas numa consulta desta natureza, que, apesar de informal, foi utilizada pelo Município para justificar a rejeição da localização acordada entre as partes e oficialmente aprovada em reunião camarária.

Refira-se que o argumento invocado pela DGPC para desaconselhar a localização do Memorial no Largo José Saramago foram os potenciais “impactos formais e visuais significativos” do Memorial naquele espaço, que “encerraria a praça face ao rio Tejo”. Uma opinião baseada, como já referimos, na análise de imagens falsas, da autoria de terceiros, com uma densidade muito superior à do projeto real.

Importa sublinhar que o projeto inicial do Memorial foi já objeto de uma revisão pelo seu autor, Kiluanji Kia Henda, e respetivos colaboradores, que resultou na redução do número de canas, de modo a mitigar o seu impacto visual, conforme exigido ainda pelo anterior Executivo da CML e por Carrilho da Graça. As imagens produzidas por este arquiteto e enviadas pela Câmara à DGPC nada têm a ver com o projeto atual.

Por seu lado, a análise informal realizada pela EMEL aponta a perda da garantia da obra do parque de estacionamento subterrâneo localizado no Largo José Saramago, em caso de intervenção na cobertura do mesmo, bem como a existência recente de problemas de infiltrações, como fatores que não recomendam a colocação do Memorial sobre a referida cobertura.

Quanto aos problemas de infiltrações, não vislumbramos outra solução que não a da sua rápida reparação, de modo a garantir a integridade da estrutura e a segurança dos utentes do parque subterrâneo. No que diz respeito à interrupção da garantia da obra de construção do parque em caso de intervenção na sua cobertura, não se compreende como tal se tornou neste momento um impedimento para a implantação do Memorial nesse local, uma vez que se trata de uma disposição contratual aplicável desde o início de todo este processo. Cabe relembrar que a localização original proposta pela Djass – Associação de Afrodescendentes para implantação do Memorial era a Ribeira das Naus, tendo sido a Câmara Municipal de Lisboa a propor a alteração para o Largo José Saramago, proposta aceite pela Associação e sancionada em reunião de Câmara em junho de 2019.

Quanto à nova localização proposta pela CML, esta só pode merecer o nosso mais veemente repúdio. Trata-se de uma estreita via de acesso a um cais e a um espaço de estacionamento na zona da Doca da Marinha, que não só diminui significativamente a área disponível para implantação do Memorial, o que resultaria inevitavelmente na sua brutal redução, como o obrigaria a partilhar o espaço com as viaturas que aí circulariam. É uma localização inaceitável, que despromove e em nada dignifica o Memorial e é contrária aos termos de referência do projeto e à deliberação aprovada em 2019 em reunião de Câmara. Tanto a associação Djass, como o artista Kiluanji Kia Henda repudiam esta proposta, que é ofensiva, que oferece uma falsa alternativa de localização, que a CML sabe que não poderia ser aceite.

Esta conduta revela que o atual executivo da Câmara Municipal de Lisboa presidido por Carlos Moedas não só não valoriza o projeto, como parece querer impedir a sua concretização. Estamos perante aquilo que não podemos deixar de considerar uma estratégia de obstrução e boicote ao Memorial por parte do atual Executivo municipal, que tem recorrido a sucessivos expedientes dilatórios para obstaculizar o processo.

Uma estratégia que tem incluído a ausência ou excessiva demora na resposta aos contactos da organização proponente do Memorial; o pedido intempestivo de pareceres que não são pareceres, mas meras consultas informais, instruídas com imagens ilegítimas; a recusa da implementação de uma deliberação aprovada em reunião de Câmara; a tentativa de imposição de uma nova localização, indigna para um projeto com estas características; a mudança das “regras do jogo”, viciando o processo. Por tudo isto, só podemos concluir que a Câmara Municipal de Lisboa não está de boa-fé neste processo e não quer que o Memorial exista.

É inaceitável o modo negligente e desrespeitoso como a Câmara Municipal de Lisboa tem encarado um projeto com tanta importância simbólica para a cidade, proposto por uma organização da sociedade civil e votado pelas/os munícipes. Mas, infelizmente, não é caso único. O projeto de colocação em vários locais da cidade de vinte placas toponímicas e um busto para assinalar e homenagear a secular presença africana em Lisboa, uma iniciativa da Associação Batoto Yetu Portugal (BYP), continua igualmente por concretizar. Apesar de as peças estarem prontas desde 2020, o financiamento disponibilizado pela CML através do programa BIP/ZIP foi insuficiente para a sua colocação nas ruas da cidade. Os 6 mil euros em falta foram, entretanto, angariados pela Associação BYP em 2022 através de financiamento colaborativo, mas desde então nada avançou e as placas e o busto continuam por colocar. Trata-se de um bloqueio, semelhante ao que tem impedido a concretização do Memorial, que esperamos que termine em breve, para que finalmente fique disponível ao público este importante projeto da Batoto Yetu Portugal, à qual manifestamos toda a nossa solidariedade.

Quanto ao Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas, continuaremos a bater-nos pela sua implantação no Largo José Saramago, o espaço para o qual a obra artística foi especificamente concebida por Kiluanji Kia Henda e que foi aprovado em reunião da Câmara de Lisboa em 2019 para acolher o Memorial. Uma localização que já é, ela própria, alternativa, uma vez que a localização original proposta pela associação Djass era o jardim da Ribeira das Naus.

Os obstáculos não nos demoverão. Na realidade, o processo de criação do Memorial tem sido pródigo em percalços. Desde a rejeição da proposta inicial apresentada ao Orçamento Participativo por, alegadamente, não atingir o custo mínimo exigido, de que a Djass recorreu, passando pela tentativa de impor restrições inaceitáveis à volumetria do Memorial e por diversos problemas e exigências técnicas que obrigaram à alteração do projeto, foram várias as barreiras que tivemos de superar para que o Memorial seja uma realidade.

Nada disto, porém, nos surpreende. Quando decidimos propor a criação, em Lisboa, de um memorial de homenagem às pessoas escravizadas pelo império colonial português sabíamos que, tratando-se de uma proposta que confronta as narrativas hegemónicas sobre a História do país e questiona os fundamentos da identidade nacional, seriam muitos os obstáculos à sua consecução. Mas aqui estamos para continuar a lutar por esta homenagem há muito devida à memória e resistência das pessoas escravizadas, ao presente e ao futuro das pessoas africanas e afrodescendentes.

Sabemos que podemos contar com o apoio de muitas pessoas e organizações, a nível nacional e internacional, que querem que este projeto seja uma realidade e que a memorialização da História de Portugal seja feita de forma crítica e verdadeira e não assente em mitos que tentam ocultar toda a opressão que ela encerrou.

A Direção da Djass – Associação de Afrodescendentes

[Imagem: Paulo Moreira architectures © 2022]

via: https://www.facebook.com/associacao.djass/

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